Resistência Bye, Bytes!
No ano de 2220, após o décimo sétimo desastre biológico (DBio-17), causado por mãos humanas com propósitos eugenistas, a crise de desabastecimento e a fome planetária levaram as famílias mais ricas do mundo a se mudarem definitivamente para as colônias da Lua e Marte, levando consigo apenas os empregados necessários, os amigos ricos, artistas para seu entretenimento pessoal e os intelectuais que julgaram merecedores.
A colonização extraterrestre para toda a população se mostrou inviável à medida que grandes empresas de tecnologia e exploração espacial precisavam contingenciar as verbas de seus projetos espaciais distantes para resolver problemas dentro da Terra. Em certo ponto, seus líderes optaram por pegar suas malas e familiares para fugir para o espaço – deixando para trás apenas miséria, caos ambiental e corrupção dentro de um sistema falido.
Há muito já cansadas, as pessoas não se conformaram com a situação caótica do planeta e formaram a Resistência, conhecida mundialmente pelas ações contundentes e pela organização interna. Foi dentro da Resistência que as mentes brilhantes deixadas para trás conseguiram desenvolver o protótipo do reciclador e purificador de ar pessoal, que possibilitará visitas à Superfície na tentativa de recuperá-la e fazer a humanidade viver sob a luz do Sol novamente. Dentro da Resistência Bye, Bytes! todas as pessoas são conhecidas como Resistentes, independentemente de seu nível hierárquico. Nas cidades subterrâneas, a Resistência está presente e sempre disposta a acolher novos membros, ajudando também aqueles que não acreditam na causa ou que agem sem escrúpulos para enriquecer às custas dos 14 bilhões que restaram após o Dbio-17.
Esses que enriquecem com ameaças, falsas promessas e distribuição “gratuita” de ração são os mesmos que tentam a todo custo explodir o Banco de Sementes, para que nunca mais haja biodiversidade. Os diretores e presidentes deixados para trás na Terra são os herdeiros dos legados de destruição e seguem reforçando a missão das grandes corporações que fugiram para o espaço: a detenção dos direitos alimentares da população e a garantia de que todas as pessoas consumirão apenas seus produtos.
Rações de embutidos de trigo e soja para os pobres, vegetais 3D de soja para os ricos. Por baixo (ou por cima?) dos panos, os maiores capitalistas desviavam a ração de trigo para transformá-la em uísque. Eles faziam competições da melhor safra e o critério era a data: por quanto tempo eram capazes de manter seu estoque longe das mãos depredatórias da sociedade em geral?
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Cyverlisa rapidamente encontrou seu comunicador de longa distância escondido atrás da privada. Digitou avidamente para o contato de Raquel, que aguardava na outra ponta com a equipe de operações da Resistência. “R, confirme recebimento”, e em seguida, sem tempo a perder, enviou outra mensagem: “Mudança rota”. Raquel assentiu para o recebimento positivo. “Greve fábrica”, continuou Cyverlisa, “N tenho 9dds”, “C desligo”.
Do lado de fora da cabine, a lata de lixo que Cyverlisa posicionara em frente à porta foi empurrada por alguém entrando no banheiro. O barulho fez Cyverlisa esconder o comunicador por baixo das roupas enquanto apertava a descarga a vácuo.
— Cacete Morrigan, por que você deixou a porcaria da lata de lixo na frente da porcaria da porta? — vociferou Jane, sempre enfurecida e com pressa. Ela foi verificar se Cyverlisa (ou Morrigan, seu nome de disfarce) já havia terminado e estava voltando para a escolta do lote de trigo. Ela era a encarregada por garantir que todos os membros da operação estavam de acordo com as exigências e não faziam parte da Resistência de maneira alguma.
— Jane, Jane! Uma ciborgue não pode fazer suas necessidades em paz?
— Ciborgue? Me poupe, Morrigan. Só porque você tem um olho biônico não quer dizer que você seja uma ciborgue. Se for assim, eu clamo meu nome de pirata e todos vocês passam a me chamar de Senhora Dona Perna Eletrônica a partir de hoje.
Abrindo a porta do banheiro e posicionando as mãos sob o limpador, Cyverlisa riu para disfarçar o nervoso e a impossibilidade de ajudar suas colegas de operação na outra ponta.
— Certo, “Senhora Dona Perna Eletrônica” — diz Cyverlisa fazendo aspas com os dedos — Vamos voltar e finalizar o serviço antes que os empregados percebam nossa movimentação.
O plano da Resistência era infiltrar uma agente nas operações de desvio de trigo e recuperar a carga desviada, levando-a de volta às usinas de beneficiamento e garantindo que a distribuição fosse igualitária entre a população dos bunkers-cidade. Com aquela espécie modificada para servir exclusivamente como ração humana, eram precisos dois mil quilos de trigo para fazer apenas dez litros de uísque.
Por ter sempre mantido um perfil discreto na vida pública, aversa à exposição e contrária à observação das big corps, Cyverlisa foi escolhida para a missão. Ao longo dos meses ganhou a confiança dos traficantes com sua identidade falsa e aptidão nos testes físicos e intelectuais. Com seu olho biônico era capaz de enxergar em infravermelho e rapidamente se tornou a queridinha das operações de escolta por avistar primeiro os “ladrões” e outros Resistentes.
— Ativando visão infravermelha. — Com o comando de seu cérebro, ela faz a varredura do local. — Nenhum corpo encontrado fora da fábrica, terreno limpo para a operação — concluiu.
Jane e Morrigan voltaram para os outros assim que o carregamento manual das cargas de trigo terminaram. Os transportes analógicos eram muito utilizados em operações ilegais por não haver a possibilidade de terem as rotas hackeadas. A única esperança de Cyverlisa era que a rota atual não diferisse tanto da antiga para que o grupo liderado por Raquel fosse capaz de identificar a rota a partir do GPS que ela pegara no banheiro.
“A qualquer momento”, pensou Cyverlisa enquanto fazia de tudo para manter-se calma, “por favor, achem a rota antes que descubram o sinal do GPS comigo”.
Nem os bloqueadores de ansiedade que tomara antes seriam capazes de lidar com esse nível de estresse. Muitas vidas famintas estavam em jogo, aquele era o único alimento disponível no planeta e uns poucos ricos preferiam desperdiçar tudo em bebida!
— MORRIGAN! Caralho, acorda, faça a varredura! — Jane estava em pé com uma mão no pescoço e outra no clipe metálico da cabeça de Cyverlisa, tentando encontrar algum botão que ativasse a visão infravermelha.
— Você sabe que não tem nenhum botão, né? Eu controlo o switch de funções com meus pensamentos, sua idiota. Tire suas mãos de mim antes que eu te transforme na Pirata Mãos de Gancho.
Após a aniquilação completa dos últimos milhares de espécies que provaram ser resilientes por séculos e mais de 8 bilhões de pessoas assassinadas dentro dos bunkers durante o DBio-17, tudo que restara a Cyverlisa foi a racionalidade e um desejo inabalável de restabelecer a vida na Terra. Ela sempre foi pacifista, mas teve de se adaptar ao mundo do tráfico e seus costumes.
Depois da leitura ser feita e nenhum corpo estranho ser identificado, ela começou a achar que a missão havia falhado ali mesmo e que ela teria de viver mais incontáveis dias como Morrigan, a estrela prodígio do tráfico de trigo.Porémum ponto de esperança iluminou sua tela: sete manchas laranjas apareceram no campo de visão tangenciando a rota esperada do caminhão. Era o grupo de Raquel. A formação com cinco em pé e dois deitados não deixou dúvidas: a missão da Resistência seguia valendo.
“Em três, dois, um…!” Um forte estrondo sacudiu o caminhão e todos dentro foram arremessados para frente violentamente. Morrigan foi a primeira a se levantar e rendeu Jane, que estava um pouco mais a sua frente, para que esta não pudesse usar o comunicador e delatar o grupo de Raquel.
— Que porra é essa, Morrigan? — Jane xingava muito, mas nada mais importava: Raquel e os outros já estavam dentro do caminhão e haviam rendido os outros traficantes.
— Meu nome é Cyverlisa, e você está tendo a grande honra de conhecer a Resistência em ação.
— Cyver! — chamou Raquel — Que bom que você conseguiu mandar aquela mensagem. O Juninho conseguiu gerar a nova rota do caminhão com base nas últimas entregas desse grupo que pudemos observar.
Raquel tirou seu respirador e falou com sua voz alta e clara:
— Atenção, traficantes! Nossa guerra não é contra vocês, mas sim contra quem contratou vocês. Guardem nossos rostos com carinho no coração de vocês, pois serão a única vez que vamos nos encontrar de maneira harmoniosa caso vocês decidam nos dedurar para seu chefe. Espero que eu tenha me feito entender. — Raquel virou-se para outro membro da equipe e passou um comando — Fê, dopa todo mundo e coloca eles deitados na beira da estrada.
— A gente estraçalhou a frente desse caminhão — disse Fê —, mas o nosso caminhão vem logo atrás. Acredita que essa greve nem foi coisa nossa? Parece que a raiva finalmente chegou em todo mundo.
Os traficantes ofereceram pouca resistência e logo caíram no sono, e foram deitados ao lado do caminhão. Em menos de meia hora acordariam e poderiam voltar para seus apartamentos e, quem sabe, poderiam se unir à Resistência no futuro? Com certeza o tratamento que lhes fora dado em uma operação violenta de receptação de carga (previamente desviada de qualquer maneira) não chegava perto do tratamento de morte oferecido aos maus traficantes. Todas as vidas eram dispensáveis para o clube do uísque.
De volta à fábrica, Raquel e seu grupo discursaram para os funcionários grevistas, convidando-os a se juntarem à Resistência e desmistificando a propaganda enganosa que os governos e outras facções faziam. Passaram no telão toda a operação gravada por um dos membros e também mostraram ao vivo como estavam os traficantes, que despertavam somente com escoriações por conta da freada brusca.
— Esse trigo não é tudo que nos resta — Raquel começou —, mas hoje é tudo o que temos. Nossa comida há muito foi perdida e tradições milenares morreram junto à Superfície. Os desalmados que fizeram isso conosco foram covardemente se abrigar em Marte e na Lua, rindo de nós aqui, soterrados pelo chorume e açoitados pela radiação! Nossa única felicidade, ironicamente, é não poder olhar para os céus e nos enfurecer ainda mais com o escárnio deles. Colegas! Somos todos um aqui embaixo, e a única maneira de nos ajudarmos é vencendo aqueles que não querem cooperar com a recuperação da Terra. Acabamos de reaver duas toneladas de trigo que estavam sendo desviadas para fabricar uísque. Dois mil quilos! Isso é trigo para alimentar TODA a população desse bunker por duas semanas antes que chegue a próxima safra.A Resistência mais do que nunca precisa de pessoas como vocês, que se indignaram contra os absurdos que são praticados contra nós todos os dias na surdina. O próximo alvo confirmado desses facínoras é o Banco de Sementes, que hoje só se encontra em pé por ter sido cavado ainda mais fundo no centro da Terra do que nossas residências, tornando seu acesso quase impossível.
— Agora que não há mais nada na superfície e nenhum escrúpulo nesses malditos buracos que chamamos de cidades — argumentou Cyverlisa —, é apenas uma questão de tempo até montarem mais um míssil atômico para cavar uma cova até o Banco. Colegas, cidadãos, pessoas… até quando vamos viver só de plantas tão modificadas que são irreconhecíveis? Quantos aqui não se lembram das histórias de seus antepassados e das celebrações que giravam em torno da comida? Quantos aqui não se alimentam somente após tomarem seus estimuladores de apetite? Quantos aqui não acharam escondido em algum lugar de suas antigas residências um livro com animais, plantas e comidas que nós só vemos em formatos sintéticos?A vida não se resume a comer comida reciclada, a tomar água reciclada e a respirar ar reciclado. A Terra ainda existe lá em cima e nós somos a única esperança da nossa vida se tornar melhor!
— Nosso convite está aberto a todos vocês que não querem passar o resto da vida contemplando o próprio vazio — com energia, Fê continuou o discurso — Se movimentem! Se enraiveçam! Direcionem a frustração para uma ação concreta! Ainda existem meios de recuperar nosso lindo planeta. Todos os 14 bilhões que ficaram vivos têm direito a uma vida digna. Comida de verdade. Vegetais de verdade. Água nova!O rastro de destruição que foi deixado para trás não foi pensando em nós. Eles acharam que nós cederíamos ao desespero, que iríamos sucumbir à desesperança e morrer de fome, um a um. Que as sementes de trigo não nasceriam na terra reciclada e a soja não desceria em nossas gargantas e... — O discurso foi interrompido.Um grito vindo de alguém que estava pulando e gritando a plenos pulmões sem seu respirador encheu de esperança aquele pequeno grupo de Resistentes, pois a missão deles havia dado mais do que certo:
— ELES ACHARAM ERRADO!
FIM
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